Posicionei minha câmera para que batesse uma foto de mim. Marquei o timer para 15 segundos, apertei o botão do disparo e me posicionei. Quando voltei percebi que havia gravado um filme e não batido uma foto. No centro estava eu com meu sorriso falso de sempre, se podia ver muitas pessoas a caminhar pela rua, mas às margens, no canto inferior esquerdo, uma cena marcante foi gravada.
Uma pessoa, lhe faltavam na face feições que se pudessem traduzir em sexo, segurava no que sobrou das mãos uma bela fatia de melancia. Não lhe restavam nenhum dos que talvez um dia foram 10 dedos, e mesmo as palmas das mãos lhe estavam decepadas pela metade; se distinguiam do braço apenas pelos movimentos do pulso. Há aqueles que acreditem que a sorte de alguém se pode ler das palmas de suas mãos: tínhamos aqui um exemplo cabal daqueles aos que não resta nenhuma sorte.
Contudo estava feliz. Equilibrava o banquete espremendo-o com os membros; o exibia aos colegas de miséria como quem levantasse um maravilhoso troféu. Os olhos de protagonista também acompanhavam sua presa, que balançava nos ares, inacreditavelmente equilibrada. Desviava a atenção apenas quando lhe alcançavam uma risada mais alta ou um barulho qualquer de espanto; os mirava como que para lhes confirmar que era verdade. A pele não tinha razão para achar graça, então sua feição continuava sempre a mesma. Uma contemplação doente, um sorriso febril e sem dentes, numa boca aberta de fome. Uma felicidade tênue na contramão de toda sua existência.
Dois dos muitos pares de pernas que passam à frente da nossa estrela param ao seu lado direito. Os olhos se viram a dividir sua alegria. Alcançam seus bolsos esquerdos, lhe atiram um par de moedas, e voltam a caminhar.
Aqui se pode ver, de se olhar muitas vezes, e se querendo permitir, uma ligeira alteração nos olhos em que nos concentramos de agora em diante. O corpo não acredita e por isso não obedece, mas a fraqueza dos olhos exibe ao mundo sua enorme felicidade, enquanto seus lábios estão a rir de sua própria miséria. É necessário colaborar com o narrador e dar lhe toda a força de sua imaginação, já que o nosso ápice chegaria ao fim antes mesmo que as moedas soassem ao atingir o chão, pois antes disso, uma delas acertou a melancia.
De volta aos olhos: o medo. Os membros sentiram uma ligeira vibração na presa, e somente agora os olhos voltam a concentrar-se em dar ao cérebro informação suficiente para trabalhar. Desavisado, emite uma ordem aos dedos que já não estão mais ali. Só agora lhe chegam as imagens, e se dá conta de seu grave erro. Dispara ainda um movimento repentino e mal calculado que descarta enfim todas as chances de sucesso. A melancia quica ainda duas vezes na pele seca antes de tocar o chão molhado.
Molhado das monções e da urina dos ratos. De volta aos olhos: o pavor. Já sabem que não há mais o que comer. Os que estavam gargalhando não suportaram e desviaram seus olhares. Uma última risada seca é rapidamente interrompida pela metade. Nossos olhos vão em direção à esse som e não encontram outros que lhe possam ser solidários, procuram onde agora pouco estavam os outros, e também não os pode encontrar.
Perdidos no abismo da solidão estes olhos se fecham. Não precisamos deles para ler a tristeza, ela sempre esteve no resto do corpo. Se abrem de dor, olham pra cima, para a melancia, e para todos os outros lados procurando ao menos as moedas, enquanto começam a chorar.
Depois dos olhos começa a chorar o corpo. Não os acompanhou na felicidade, mas o costume o leva facilmente a passear pela dor. Não se enganem: não houveram grandes transformações. A postura já era a mais entregue possível durante toda a cena, a face continua a mesma, os punhos grotescos ainda estão ali. Recebem de volta os olhos do seu delírio de felicidade, companheiros de sentimento, o único que lhes resta, por ser o único que se lembram de sentir.
Juntos apresentam o teatro do desespero. Os olhos lacrimejam, os punhos esmagam a melancia, o tronco se entrega ainda mais. Lábios abertos de fome num silêncio de angústia que não cabe dentro da sua existência, muito maior que aquela pessoa, uma a mais ou a menos em meio a tantos, mera coadjuvante de um vídeo meu.
Passaram muitas outras pernas, mas elas não param desta vez.
2 de setembro de 2007
Escrevi esse texto como o primeiro de uma série que pretendo escrever durante a viagem. Foi bem divertido, e me fez passar bem mais rápido a madrugada do fuso horário e a manhã das monções. É um texto de ficção, embora repleto de elementos reais, como provavelmente serão todos os outros. Já tive muitas idéias mas essa foi a primeira que levei a cabo. Foi de ver que nem tudo é bonito no mundo que saiu bem angustiante. Nos Estados Unidos tudo era lindo, em Cuba era feio mas se podia ver a beleza escondida, mas na minha breve estadia em Mumbai só o que eu vi foi tudo aquilo que todos lutam para exterminar, além das pragas propriamente ditas.
E sempre tive vontade de escrever ainda que corriqueiramente estorinhas como essa e nunca de fato o fiz por não ter ninguém que fosse ler. Não queria escrever pra ficar só pra mim e nem tampouco mostrar a uns poucos amigos como uma confidência. Então, agora que o viajandão tem um público regular e que aparentemente está lendo o que eu escrevo, pareceu-me um momento oportuno, e lhes agradeço pela ajuda ainda que involuntária.
E se isso levantou em alguém qualquer dúvida já lhes apago: não tenho nenhuma vocação nem estou tendo uma ego trip de vir a ser escritor! Isso é só mais um elemento deste ano de sonho que eu estou vivendo.
M.V.A.
10 comentários:
Carai!
Mto foda o texto! Mto bom mesmo, tá realmente parecendo uma egotrip de escritor! Mas tá valendo!
Não pára de escrever textos assim não... Acredito que essa vá ser uma das suas melhores lembranças da viagem! E um dia pode virar um livro! Hehehehe
Abraço!
(e aproveita GOA como deve ser aproveitada!)
Muito bacana. A essência tá legal. Falta dar uma polida no português, mesmo pra você das exatas. Continue assim que você vai longe.
Abraços
Gostei do texto...bem forte....
a imagem daí é essa mesmo? bjo e saudades!
pato, show de bola!!!
o texto é bem viagem mas prende o leitor na ficção, na cena descrita!
Realmente este ano deve estar sendo de sonho mesmo, escreva sempre que der, retrate as situações e/ou lugares conhecidos e viaje...em todos os sentidos, sem obrigação ou formalidade alguma!
Que inveja de ti, meu quirido!!! Inveja da boa!!!
Continua atualizando sempre o viajandão, estou em pleno trampo e maravilhado com os relatos das Índias!
Grande abraço, t+!!!
FODA PATO...bem louco mesmo!!! outubro chego ai....
abraço
Adorei o texto tbm!!!! Muito bom!!!!
Saudades!
Beijosss
Marcelo,
Continue assim: é o relato de detalhes que torna a leitura atraente. Parece que estamos juntos na viagem.
Abração,
Magno
Que massa galera! de um dia pro outro 7 comentarios!!
que bom que vcs gostaram! Ja to com um outro desses na cabeca sobre uma coisa que se passou em cuba, mas ainda to amadurecendo a ideia, e quando tiver mais elementos pra colocar no texto eu faco um!
agora eu to em Hampi, a primeira cidade fabulosa que conheci na India! Tem umas ruinas muito massas aqui! amanha vo alugar uma motinho e ir dar um role pelas redondezas! o sentimento de paz aqui e muito bom! beijao, no final da estadia aqui eu mando um post com fotos e sobre como foi tudo tambem!!
Irado o texto. Essa parada de escrever é muito doida, continua mandando os textos ai q a gente vai acompanhar com o maior prazer!
By the way, acabamos de chegar na turquia, ou seja, saimos do level easy q era europa...
Abraçao Pato
Texto muito bom, blog excelente! Continua escrevendo bastante pra gente poder aproveitar um pouco da viagem com vc! Abração, Albertino
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